terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

A vida é feita de sonhos e ilusões.

Por: ANTÓNIO CENTEIO

Quando acordou já era dia e um lindo sol coloria tudo ao seu redor. Para Sandra, o problema era com atravessar a floresta. O silêncio da floresta intrigava-a como os perigos que existiam no seu interior. Mas sabia que uma pessoa sábia tenta resolver os problemas antes que eles surjam. Descobriu que a noite é apenas uma parte do dia. Foi então que iniciou o percurso que tinha que fazer. Acreditava que algo a acompanhava nos seus passos. Nunca se esquecia de todas as armas que o homem foi capaz de inventar, a mais terrível – e a mais poderosa – era a palavra. Quem era e o que fazia sabia, muito bem. Mas há coisas inevitáveis que temos que aceitá-las como são ou então descobrir o segredo em como contorná-las para que não se avolumem mais. Tinha uma enorme Fé. Ensinaram-lhe desde pequenina que precisamos de confiança e, a confiança chama-se Fé. A fé é um mergulho numa noite escura. Acabou por atravessar a pequena floresta que a separava do chamado mundo civilizado.
Desde pequenina a minha «aluna» demonstrou sempre que, história ou filosofia seria o destino da sua licenciatura (como adorava as estrelas e o seu encanto). Acabou por escolher a última. Dizia sempre que nos mistérios do azul recebia as mensagens daquilo que acabou por seguir. Sandra era um encanto. Rompia pelos pensamentos uma áurea de inteligência para no brilho dos olhos resplandecer algo de misterioso. Toda ela era uma argúcia da natureza (só eu, a sabia compreender). Bem cedo descobri que nesta aluna que a sua capacidade em acreditar nos sinais era algo fora do comum. Previa para ela um grande futuro – nunca me enganei. Sinto-me feliz pelo tempo que despendi com Sandra.
O nosso encontro acabou por ser sublime porque o encontro de duas almas gémeas é maravilhoso. Sandra, sabia – mais do que ninguém, compreender os sinais. Nos encontros que costumávamos ter no silêncio da cabana com os nossos mensageiros acabavam sempre na aproximação de dois corpos espirituais. A essência da beleza e da Alma do Mundo não nos deixava ir mais além. Era o segredo de duas pessoas que buscavam a sabedoria no meios dos sinais e das estrelas.
Muitas vezes com a sua cabeça apoiada nas minhas pernas lamentava que a sua maior mágoa interior era saber que neste mundo materialista as pessoas nem sempre entendem a nossa linguagem.
Como gostava de Sandra!
Nestes momentos éramos duas pessoas numa só. O outro mundo, só compreendia palavras como ambição, riqueza e sucesso. Mal sabia que o futuro lhe reservava uma grande surpresa. Nas tardes chuvosas e de trovoadas assustadoras eu costumava ouvir o seu pequenino coração chorar. Chorava, porque nas profundezas do seu ser era sensível. Sentia-se insignificante para acabar com o sofrimento dos mais carenciados. A dor dos outros entrava nas suas entranhas. Como compreendia o seu grande coração.
Sentia-se uma privilegiada por estar comigo e me ter encontrado. Adorava-me e considerava-me um mestre. As suas primeiras palavras foram que “o amor é uma ponte que permite passar do mundo visível para o invisível”. Disse-me que estas palavras mais não eram do que uma homenagem a um grande escritor brasileiro que com a sua pena e sabedoria lhe tinha tocado no fundo do “ coração”.
Respondi-lhe que é preciso termos confiança na capacidade que cada pessoa tem para se ensinar a si mesma.
Sandra encontrou o seu caminho. De tanto amar Yorhge – como sabia e podia – só podia receber confiança e segurança. A vida é feita de sonhos e ilusões. Passado pouco tempo casaram-se. Yorhge era um homem experiente e um pouco mais velho do que ela. Mas soube recompensar Sandra com paixão e amor.
A vida prega partidas. Yorhge era um homem ambicioso. Correu riscos e seguiu certos caminhos que lhe dariam no futuro tanta amargura.
O sonho diluía-se. Sentia que o amor caminhava para o abismo. A ganância de querer sempre mais e mais acabou com aquilo que sonhara. Ainda bem que não tivera filhos.
O seu futuro estava ameaçado.
Nos meus ombros, as suas lágrimas corriam, sentindo eu, que a amargura estava a entrar nas profundezas da sua alma. A minha alma sentia a dor da minha aluna. Estava a sofrer em mim aquilo que Sandra sentia. Éramos como duas almas gémeas, a dor de um, era a de outro
“Ajude-me a suportar aquilo que me consome” clamava! Como chorávamos os dois.
Eu semeei os meus sonhos no chão que agora pisas; pisa suavemente, porque estás a pisar os meus sonhos, disse-lhe.
Viajamos os dois para onde pudéssemos cheirar a maresia no mar e o gosto do sal na boca. Foi então que os seus olhos brilhantes sentiram um momento intenso. Atraída por outros olhos viu que as palavras de Francesco Alberoni correspondiam à verdade. Vacilou um momento mas o homem que estava na minha retaguarda era o amor da sua vida.
Vinda de Samora Correia encontrei-a em Lisboa nas proximidades de um grande centro comercial. Contou-me que tinha três filhos e viajava pelo mundo. “O mundo é como as estrelas, sempre em mutação” dizia-me ela. Afinal tinha aprendido alguma coisa comigo.
Acreditava na presença daquilo que sempre acreditou. A todo o momento pensava em mim. Recordava com nostalgia as noites que passávamos na sua casa.
Naquelas noites frias junto da lareira onde me pedia docemente “senta-te no sofá, porque só nele, com a companhia do calor das brasas, podes sentir o som das melodias que as cordas do meu violino tanto sensibilizam o teu coração. Para ti mestre, que tanto adoro, dedico-te as memórias do tempo”.
Como ela sabia executar “Lara’s Theme”. Tinha o “ dom” de me sensibilizar. Sabia o sentir do meu coração e aproveitava todas as oportunidades da vida para que estas demorassem muito tempo a voltar. Por tudo que lhe ensinei e pelo que fiz por ela, com os olhos fixos em mim, as suas lágrimas corriam pela sua face, cuja pele já demonstrava que o passar dos anos deixam as suas marcas. Mas a sua beleza feminina interior continuava sendo a mesma.
Mestre, como me chamava Sandra, dou-lhe como presente, ser o mestre de Petrus – seu filho predilecto, pela sua gratidão e pelo facto de existir como ter vindo ao meu encontro e ter esperado tanto tempo por ele.
Leve-me consigo – disse ela. Ensine-me a caminhar pelo seu mundo. Viajámos os dois no tempo, no espaço. Sandra viu campos floridos e cidades que flutuavam em nuvens de luz. No campo de trigo, ela compreendeu que os símbolos sagrados estão num dos Pólos da Terra. Precisamos de encontrar o nosso caminho mas sem nunca termos medo de o atravessar.
Lembrar-me-ei de ti a vida inteira, e tu lembrar-te-ás de mim, como das coisas que teremos sempre porque não podemos possui-las.
É preciso ajudar a construir, é preciso ensinar as pessoas a ensinarem-se a si mesmas. É pena que não seja da tua idade. Teríamos sido um grande casal. Não me esqueças nunca!

domingo, 20 de janeiro de 2008

O ALPIARCENSE: Instala�o de 2 Contact Center de duas grandes empresas em Alpiar�a

O ALPIARCENSE: Instala�o de 2 Contact Center de duas grandes empresas em Alpiar�a

O pequeno saltimbanco

O pequeno saltimbanco

Por: António Centeio

Porque a tarde outonal e a temperatura estava amena, fui à esplanada do Jardim para saborear um pouco daquilo que só este espaço de lazer sabe oferecer. Sentado numa mesa, olhava para as folhas que o leve Vento despregava suavemente das árvores. Algumas pessoas, também lá se encontravam. Umas, liam os jornais do dia, enquanto outras, conversavam dos mais variados assuntos, mas nenhuma contemplava a beleza e os contrastes da natureza.
Acompanhando o cair de uma folha do ramo de uma árvore, torcida pelo passar dos anos e de tão queimada estar do calor, os meus olhos seguiram todo o seu percurso. Quando se acomodou na terra fria, vi no meio de duas árvores uma pequena sombra de algo que parecia ser uma pessoa.
Continuando a olhar, esperei algum tempo para ver se não estava a ter alguma ilusão óptica ou se o perfil se deslocava. Nada aconteceu. Então, levantei-me e saí da mesa, para ir ver o que era ou quem era porque a rectaguarda do grosso tronco da árvore não me permitia destrinçar a verdade da ilusão sombria de um julgado perfil humano.
Voltado para a avenida, sozinho e encostado à árvore acastanhada estava uma fraca figura humana com pouco mais de doze anos, que passava despercebida aos menos atentos.
Perturbador, era o seu estado físico de tão magro estar.
Vestido com roupas todas desalinhadas e amarrotadas – talvez por dormir com elas em todos os sítios menos numa cama; com um cachecol de lã axadrezado no pescoço a aconchegá-lo, de cor castanha como a árvore que o amparava; sapatos a puxarem para o desleixado e a mostrarem que os seus melhores dias já há muito tinham acabado; os seus cabelos lisos, fininhos e alourados, não eram nem curtos nem compridos, simplesmente estavam oleosos e sujos; uma cara linda mas com uma cor torrada de tanto queimada estar pelo Sol para além de ressequida pelo Vento; orelhas transparentes pela claridade que nelas trespassava e um nariz achatado.
Com uns olhos azuis da cor do mar, uma pequena lágrima vinda do seu olho direito, evidenciava uma profunda dor e amargura – talvez por a vida não lhe sorrir; olheiras profundas, demonstravam que dormir e comer eram coisas há muito que seu franzino corpo necessitava.
No momento exacto que olhei para esta pequena figura de gente, senti a minha voz interior, dizendo “és um privilegiado da vida; vives num mundo diferente e nem sequer abrevias os passos apressados que dás durante o dia para pensares e veres como é o mundo destas crianças e tudo que o rodeia” É verdade! Reconheço que muitas vezes a correria da vida e o desejo de chegar mais depressa, impossibilita-me – aos outros também – de olhar para o que se passa mesmo ao meu lado. Esta voz interior mexeu bem dentro de mim. Levou-me a pensar que às vezes para encontrarmos o caminho certo temos que andar por caminhos errados.
- Quem és tu e porque estás sozinho aqui?
Olhando-me «olhos nos olhos» respondeu-me:
- Que tem o senhor a haver com isso?
Das suas palavras, compreendi logo na aspereza das mesmas, que a vida não lhe sorria.
- Queres sentar-te comigo, ali esplanada, que ofereço-te um copo de leite e umas torradinhas, porque pareces estar com fome?
Continuando a olhar-me, bem lá no «seu fundo» algo lhe disse que eu merecia a confiança que estava tentando conquistar, respondendo-me:
- Sim, aceito, porque tenho tanta fome, senhor. Já quase há quatro dias que nada mastigo.
Devorou tudo com satisfação o que lhe prometi e mais alguma coisa. Depois de ter conversado um pouco com ele, agora mais confiante, começou a «abrir-se» contando-me um pouco da sua atribulada e curta vida. A ingratidão da vida, o ambiente em que fora criado e a revolta interior, eram coisas que se reflectiam na nossa conversa.
Seu pai um músico saltimbanco (vindo e fugindo da miséria espanhola, veio para o nosso país, porque alguém lhe disse que “ em Portugal, ganha-se bem a vida pedindo esmola) explorava-o com o pouco que sabia tocar, já que tinha o dom de aprender com o ouvido. Um luxo demais para uma pequena criança, que bem sentia na pele, o preço de saber aquilo que nunca deveria saber.
Obrigava-o a tocar melodias tristes nos locais de grande movimento (tinha vindo de uma movimentada artéria das Caldas da Rainha) com uma «concertina» toda esfarrapada, para que as pessoas, dele tivessem pena e lhes dessem esmola, que por sua vez, tinha que restituir diariamente ao pai todo o valor obtido.
Quando não lhe davam o valor que o pai achava justo, a agressão e as ofensas eram coisas comuns na vida e ambiente familiar do pequeno, se ambiente familiar se pode chamar, a quem dormia dentro de um automóvel sem vidros, com bancos esfarrapados e apenas abafado por um pano roto e encardido de tanto ser usado. Para agravar mais a situação, o seu estômago já não recebia qualquer tipo de alimentação há alguns dias, porque não «trabalhou» para ter mais receitas, que o pai gostava de receber e precisava para gastar no álcool e tabaco, enquanto o seu rebento tocava na frente daqueles que sentados nas esplanadas das zonas de lazer, saboreavam os melhores acepipes, olhando-o com desprezo por estar descalço, sujo, roto e, ainda por cima, tocando músicas nostálgicas, quando na verdade queriam era: divertirem-se, pouco lhes interessando a miséria que na sua frente aguentava a passagem das tempestades.
Ainda hoje eu sinto na minha boca o gosto amargo das minhas lágrimas, quando o «pequeno saltimbanco» depois de satisfeita a sua avidez, com uns olhos ternos, mas tão cavados, olha para as profundezas da minha alma – até me arrepiei, tal era a sua convicção – dizendo “senhor, é tão triste estar a tocar e na minha frente ver as pessoas comendo e bebendo coisas que eu não sei o gosto que tem e pensar se algum dia terei o prazer que estavam a ter” para acrescentar docemente “ sabe quando pesa a concertina?” – claro que não sabia nem sei – “ às vezes, quando tocava, encolhia-me com dores na minha barriga com tanta fome”.
Porque as tardes no Outono são mais curtas e porque o nosso diálogo já ia longo, perguntei-lhe a razão de estar sozinho na cidade, para me responder “ fugi de meu pai e das arrebatadas que me dava todos os dias por não lhe dar o dinheiro que queria”. No momento, fiquei sem argumentos tendo em atenção a idade dele.
- Para onde vais agora? Sem dinheiro, sem documentos, sem conheceres os locais e tão pequeno que és?
Erguendo o seu curto tronco e olhando para o Céu, que tinha a cor dos seus olhos, disse-me:
- Nem eu sei! Não é por aqui que se vai para Fátima?
Não foi a pé para Fátima, como pensava ir. Levei-o no meu automóvel e deixei-o numa casa de crianças carenciadas e abandonadas.
Hoje sei, que está bem. Ali está e ali quer ficar; ali quer aprender a ser um homem justo, para que um dia “possa estar sentado numa esplanada vendo o seu filho a comer um gelado e não ver na sua frente um «pequeno saltimbanco”. Assim, se despediu de mim.























segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Férias na Nazaré

Férias na Nazaré
António Centeio

Era sempre a mesma coisa. No primeiro dia do sétimo mês de cada ano, ainda o Sol não tinha nascido, já o Aníbal mais o Alfredo aparelhavam os cavalos às carroças para de seguida descerem o curto espaço que mediava entre o palheiro e a entrada da casa principal. Os patrões iam de férias mais os dois filhos.
Tinham que carregar a trouxa e a alimentação para um mês, numa só carroça. Para além do condutor iam também duas empregadas domésticas. Tudo bem arrumadinho porque o espaço era pouco e a viagem longa. A outra, a mais bonita, era puxada pelo Russo um cavalo empolgante que até parecia sentir-se vaidoso por transportar os seus donos.
Quando a noite desaparecia e no longe se via a bola de fogo, que até parecia que o Céu estava ardendo, já a algum tempo que os seus dois fieis empregados os aguardavam. Partiam bem cedinho para que o calor não os incomodasse mas também para que a viagem decorresse durante a fresquidão da manhã.
Eram viagens longas e atribuladas, algumas tenebrosas, não pelas assombrações de malfeitores, mas pelo caminho da terra ressequida e pelas tortuosas curvas do percurso. Um caminho longo e difícil de fazer. Valia-lhes a confiança do animal que puxava a carroça da frente. O Russo inspirava confiança. Galopava as ladeiras que lhes aparecia pela frente para pouco depois nas descidas os condutores terem que puxar as rédeas
Quando o Russo avistava chão plano, não era preciso dar-lhe rédea solta. Levantava o seu pescoço para ver bem o caminho e numa sacudidela fazia tilintar os guizos. Era o seu momento empolgante. Os viajantes sorriam com esta euforia.
Era o momento em que o patrão tinha que segurar o chapéu, a patroa os filhos, os empregados os bonés e as empregadas deixavam o seu cabelo desfraldar como uma bandeira em dias de vento.
Dada ordem de marcha, tudo era composto nos devidos lugares para o ultimo a subir, ser o condutor da carroça da frente, já que era o empregado mais velho da casa e de confiança. A próxima e penúltima paragem seria nas proximidades de Alcobaça por escassos minutos. Não que quisessem mas porque os cavalos tinham ainda que fazer a viagem de regresso.
Chegados ao destino, no Picadeiro esperava-os a senhoria. Uma bela nazarena que gostava de receber com todas as mordomias quem acabava de chegar. Os empregados descarregavam a trouxa e demais coisas enquanto uma das empregadas levava as crianças para dentro da casa. A outra seguia imediatamente para a lota do peixe para comprar peixe que tinha sido pescado há poucas horas.
Logo tudo arrumado, seguiam-se as ordens de quem mandava determinar os deveres a quem servia. Uma das suas primeiras atribuições era preparar o almoço. Sardinha assada, assim mandava a tradição. Depois, esperar pela chegada dos banheiros que acompanhariam durante as férias toda a família. Cabia-lhes acompanhar ao mar, como vigiar, quem fosse tomar banho para depois de terminado os envolver em toalhões e acompanhá-los até à barraca, sendo dada especial atenção às crianças.
Todos os dias, depois do jantar, os esposos iam engalanados passear no Picadeiro e conversar um pouco com outros casais. Era o momento que as nazarenas mais gostavam porque as senhoras espalhavam no ar os mais variados odores perfumados e os seus belos vestidos.
A protectora das crianças seguia a alguma distância de quem lhe dava ordens. A outra ficava em casa esperando pela chegada de quem tinha saído. No dia seguinte seria o inverso. Os condutores das carroças regressavam de onde tinham partido para só voltarem no último dia do mês.

sábado, 5 de janeiro de 2008

LIVRO DE ANTONIO CENTEIO

"Nascida na Terra do Vento" o novo romance de António Centeio já se encontra nas livrarias.
"Nascida na Terra do Vento" retracta o drama e o dificil caminho que teve de percorrer a "Viscondessa da Ribeira de Vidais".
Da fortuna que herdou, gastou-a na luxúria e na vida nocturna para se esquecer do mundo que a rodeava como de quem sempre a serviu com toda a dedicação e respeito.
Talvez por desprezar e humilhar os mais desfavorecidos o destino trocou-lhe as voltas para passar a conhecer o "outro lado da vida": a pobreza, o sofrimento e a humilhação.
Não bastasse, teve que lutar e sofrer imenso para poder criar e educar o seu único filho, fruto de um grande amor.
Visite na Internet o site:
www.gazetadospatudos.com

ROMANCES

"Beatriz, Filha Ingrata" o romance de António Centeio está novamente no mercado livreiro.
Nesta obra, pode-se ficar a saber que o "drama, a luxúria e a tragédia fazem parte de "Beatriz,Filha Ingrata" pois retrata a vida de uma menina que se torna mulher no seio de uma familia normal, enveredando pelo caminho da prostituição, por causa do dinheiro, acabando por engravidar de um desconhecido para entregar depois o filho à mãe.
Não bastando, rouba as economias da própria mãe para de seguida, abandonar os dois seres mais importantes da sua vida, voltando ao mundo que muito bem conhece...."
Ninguém, até hoje, sabe do seu paradeiro.
Visite na Internet o site: www.gazetadospatudos.com

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Manel, o velho pastor



Manel, o velho pastor

António Centeio

Uma longa estrada de terra que acaba numa contornada curva embocando depois em dois caminhos tortuosos que seguem: um para o mouchão dos franceses, outro para o malagueiro dos choupos. Demarca-os duas altas e espessas árvores.
Do lado esquerdo, antes dos desvios, pequenos cerros de terra, espessos de erva rastejante, intervalados por duas raquitas amostras de velhos troncos que teimam em manter-se de pé. Um pequeno charco recolhe águas da chuva servindo de bebedouro ao gado.
Do lado oposto, junto ao caminho, uma velha e extensa cerca de madeira com dois metros de altura. Ao comprido, velhas tábuas de madeira espaçadas umas das outras, cerca de vinte centímetros no sentido horizontal, que em tempos muita sombra fizeram e pregadas em barrotes na vertical separados uns dos outros a uma distância de um metro. Vedam a herdade para quem passe ao lado saiba que existem extremas. No seu interior, velhas árvores vivem da humidade da terra. Depois, terreno a perder de vista, cheio de verdura, vendo-se ao longe grandes salgueiros que escondem o rio Tejo.
Da estrada até ao rio, a meio, uma pequena casa de madeira toda ferrada a tábuas, mas só de uma divisão. Nos dias de Inverno, apenas se vê o fumo a sair da sua chaminé. Quatro janelas de madeira, quando abertas, servem de entrada para a claridade do dia. A da noite é a chama de um velho candeeiro a petróleo que ilumina quem nela vive. Uma velha porta segura por duas dobradiças feitas de um metal qualquer, chiam quando a abrem ou fecham, excepto quando, fica aberta ou quando o vento a faz abanar.
Nesta planície viveu durante muito tempo o Manel, pastor, que passou anos inteiros na pastagem guardando as suas manadas de gado.
Quando o Sol nascia, Manel começava o dia abrindo a salgadeira onde estava guardado bocados de carne da última matança do porco. No meio de uma das várias camadas de sal, tirava o gordo toucinho já amarelecido para de seguida cortar uma fina fatia. De cima da mesa, abria a pequena lata redonda e lá de dentro cortava o quarto de pão do dia. Depois, voltava-se para o que estava a aparecer no céu. Sentava-se no seu torcido mas pequeno banco de madeira, que com pouco mais de vinte centímetros, estava acima do chão.
Pequenos fragmentos de toucinho e de pão eram cortados com o seu inseparável canivete de bolso. Era o seu pequeno-almoço.
O gado despertava aos poucos para pachorramente vir cercando a casa, de quem, dali a pouco o levaria para a pastagem. Anos e anos de costumeira. Tantos, que conheciam os hábitos uns dos outros. Muitas vezes Manel perguntava a si próprio se era ele que conhecia os hábitos dos animais se estes os dele. Pouco depois seguiam para a pastagem. Enquanto o gado pastava, o pastor levava o seu tempo debaixo dos velhos salgueiros sentado no banco que o acompanhava sempre. Nos dias quentes apetecia-lhe passar para o outro lado do rio ou neste tomar banho. Como não sabia nadar, das duas uma, ou teria que o fazer num dia que houvesse pouca corrente ou tinha que fazer como alguém disse: «Para me forçar a atravessar o rio, tenho que atirar as botas para o lado de lá. Assim tenho que as ir buscar». Nunca o atravessou.
Entre as duas tábuas que serviam de sustento ao banco metia o seu pequeno saco feito de restos de panos usados, onde estava o almoço feito no dia anterior, a merenda, a cabaça com três quartos de vinho tinto, duas pequenas pontas de corno que serviam de galheteiro, para de seguida ir à procura de bocados de lenha. Quando encontrava alguma mais verde ou macia, trazia-a. Começava o seu trabalho favorito. Fazia conchas de madeira, garfos, colheres de sopa, charruas, forquilhas, carroças puxadas por cavalos, charretes engalanadas e as mais variadas miniaturas de ferramentas agrícolas. Adorava fazer estruturas de relógios que mais pareciam as antigas capelinhas que só lhes faltava o maquinismo para poder funcionar.
Foram estas coisas que ao longo dos anos fizeram com que o Manel se tornasse num dos melhores artífices da charneca ribatejana. Dos confins do mundo procuravam-no para poderem admirar as suas obras. Por algumas, era-lhe oferecido elevadas quantias que para um modesto pastor mais não eram do que uma fortuna. Recusava sempre, porque pouco lhe interessava desperdiçar a vida em busca da fama ou na abundância do dinheiro. Valorizava mais que na sua vida deixasse obra feita para poder ser recordada na memória do tempo.
O seu lema era: aumentar o património para quando na velhice andasse com a «tralha às costas podê-la mostrar aos outros». Afirmava com convicção que as «peças de artesanato não devem ser vendidas mas sim expostas para que não se perca a tradição».
Encontrei-o um dia destes numa feira de antiguidades expondo parte dos seus objectos, onde alguns, nos dias que correm já são relíquias valiosas. Nos seus noventa e oito anos de idade, jorra saúde e alegria.
Disse-me: «quero durar mais dez para fazer uma exposição geral dos bonecos que arranjei ao longo dos anos. Não quero que acabe a tradição dos homens do campo». Apenas se emocionou quando se lembrou da apanha do figo, quando era moço. Já não conduz as suas manadas de gado, mas tem saudades do tempo em que se sentava à sombra dos salgueiros cortando bocados de madeira para «fazer as suas coisas».